Procura aê!

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Cenas do cotidiano [2]

             Seu Jõao não tinha mais o que perder na vida, ao menos era o que achava. Aos 57 anos, foi mandado embora do serviço de guarda do galpão de máquinas, porque contrataram uma empresa de vigilância armada, moderna e treinada.
             Sua mulher, dona Francisca, doente, fazia os serviços de casa com muita dificuldade, mas era um gosto ver as panelas reluzentes da sua cozinha, sempre bem asseada.
             Não tinham filhos, infortuno causado por uma “doença-brava” que dona Francisca tivera ainda muito jovem, no auge da sua idade fértil.
             Viviam os dois ali, no grilo, na favela, a escora da sociedade. A casa, uma parte de tábua e outra de alvenaria sem reboco, sustentavam o telhado de Amianto que funciona como um forno no calor de 40º da cidade. No chão, piso não tem, o sonho de Dona Francisca é colocar um “Vermelhão”(preparado especifico para o chão que habitualmente é da cor vermelha), no contrapiso, mas como o rendimento do marido era pouco e ela não tinha condições de ajudar trabalhando fora por causa das suas, como ela mesma se referia, “pestes”, esperavam que um dia, um desses políticos assistencialistas que constroem e reformam casa pro povo mais humilde para colocar em seus programas sensacionalistas afim de ganhar votos na próxima eleição, pudesse reformar seu velho barraco.
             Parando um pouco de se referir a política, se é que isto tem como, e focando em seu João, um senhor um tanto quanto simpático e alegre, todos os operários que trabalhavam de dia no galpão o respeitava, não só pela sua idade e pelas cãs brancas, mas também pela simplicidade dele. Chegava todo dia empurrando sua bicicletinha as 17:15, mesmo entrando no serviço as 18:00, gostava de chegar mais cedo, pois podia ajudar caso precisassem de alguma coisa.
               Lá se foram 15 anos, 15 anos sempre chegando cedo e saindo um pouquinho mais tarde até o companheiro do turno do dia chegar, mas também foram 15 anos sem carteira assinada, analfabeto, não conhecia seus direitos e como o patrão era um homem bom, nunca se preocupou com isso, até a tarde daquela sexta-feira:
-Seu João, eu preciso falar com o senhor, disse o tal patrão, empreiteiro de obras.
               Seu João, na sua simplicidade, pediu que o mesmo prosseguisse:
-É de saber que o senhor sempre foi um excelente funcionário para mim, sempre trabalhou corretamente, foi honesto, mas o mercado hoje em dia, está exigindo cada vez mais da gente.
                Seu João não entendia muito bem o que o chefe queria dizer, mas balançava a cabeça concordando.
-Agora nós somos obrigados a contratar vigilantes armados para tomar conta da obra e do galpão de máquinas, e com isso iremos ter que mandar o senhor embora.
                Naquele momento, seu João sentiu uma dura fisgada no peito, como se o punhal com o qual já tivera sido ferido em suas entranhas uma vez, em sua juventude, nos tempos áureos do garimpo, dessa vez tivesse atravessado sua carne em um ponto um pouco mais alto, no coração.
Olhando, fixa e imovelmente para o patrão, não sabia que reação tomava, achou melhor ficar ali, parado, enquanto o patrão dava meia volta e entreva na sua caminhonete.
                Foi embora, não conseguia mais trabalhar...
                Na segunda-feira, voltou para receber o que lhe era direito, e o patrão, sem o mínimo de dó nem piedade, o entregou muito menos do que lhe cabia dos 15 anos de serviço prestado, alegando que sem carteira assinada, não havia vínculo empregatício.
                Arrasado, saiu atordoado, sem saber para onde ir, parou no primeiro boteco que achou e bebeu, bebeu como nunca tinha bebido antes, bebeu para tentar curar aquela mágoa e angustia que tinha no seu coração. Pobre, velho, com a esposa doente em casa e agora desempregado. Apesar da sua ignorância, sabia que não conseguiria arrumar emprego em outro lugar, sabia que não iria mais ter como pagar a prestação da geladeira que deixava dona Francisca tão feliz. E cada vez que pensava, mais bebia, bebia para tentar afogar o coração, encher o cérebro de cachaça, sopitar a alma dessa bebida amarga que acaba com o homem e ao mesmo tempo o faz esquecer seus problemas.
Foto: Andressa Kuntz
               As horas passaram e o dono do bar o escorraçou do lugar, mal conseguia parar em pé, atravessou a rua cambaleando e qual foi apanhado por dois carros, chegou até a rodoviária, mas ele nem se dava conta de onde estava, cambaleou mais um pouco por entre os bancos, e sob os olhares de quem estava por ali, resmungou um pouco e foi caindo, caindo, caindo, até que dormiu, e nunca mais acordou...

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